Na primeira metade deste século [Séc.XX], aqui em Cacia, no verão, nos areais do Vouga junto à memorável Ponte de Pau, era ver ao domingo magotes de gente a dessedentar-se nas águas serenas e límpidas do Rio que em tempos medievais se chamava Rio Cacia!
De Aveiro arribavam barcos embandeirados, cheios de gente moça, rapazes alegres e tricanas vistosas, acompanhados dos seus maiores (nesse tempo a mocidade e a velhice faziam sociedade!) sobraçando foguetes, lancheiras e cestos, mantas e esteiras... e até pianos! Era um arraial de gente adomingada e a cheirar a limonete!
De Cacia e dos arredores chegavam bandos de lisboetas em férias, raparigas e rapazes a cantar e a dançar modinhas, a sanfona a despertar apetites bailariqueiros à sombra dos salgueiral! Era um fartote, um dia de prazer e de romantismo saudáveis, alegria sem drogas, euforia sem imoralidades!
A velhíssima Ponte de Pau, que o betão substituiu em 1943, havia desempenhado um bom serviço público desde 1860, ano da sua inauguração. Antes desse longínquo ano, a travessia do Vouga, naquele local, fazia-se a vau ou de barco, sendo que os barqueiros, por esse serviço, haviam grangeado do Rei o privilégio de estarem isentos de servir nas galés.
A memória traz-nos à tona uma história interessante: do lado de Angeja, logo ao fim da Ponte e junto ao "Poço do Careca", havia a Casa do Guarda, morada oficial do cobrador da "portagem" estabelecida pelo poder real, cinco réis por pessoa, um vintém por carro, preço que aumentava para um imposto mais chorudo quando o carro, em vez de erva, transportava pipas de vinho, imposto conhecido pelo "Real de Água"! O cobrador chamava-se José Venâncio, casado com a senhora Conceição, mais conhecida por Ti-Conceição da Ponte. Consta-se que este cobrador de impostos era rigoroso na cobrança, que nem a Deus-Pai perdoava, e que um dia obrigou o Dr. Afonso Costa, quando lá passou, a pagar os cinco reis da portagem. Diz-se até que foi por isso que aquele político, logo que chegou a Lisboa, mandou anular para sempre tão impopular contribuição!
Contada esta história, voltemos ao Rio.
Quando as cheias do Vouga se tornavam em caudalosas enxurradas e as águas em turbilhão atingiam o patamar da Ponte, o povo, embora temente a Deus, não desperdiçava o dantesco espectáculo de ver aquela avenida de água a arrastar árvores e madeirame, objectos de lavoura, pipas e cestos, e até animais mortos por afogamento, tudo a boiar aos trambolhões por aquele mar de água! Nessa altura o Vouga jamais era o protector benfazejo e amado, ele era um medonho e traiçoeiro inferno! E se a enxurrada demorava dias, como algumas vezes aconteceu, nem pão havia em Cacia, pois os moleiros do Fontão e de Frossos ficavam impedidos de cambiar as moendas. A própria estrada que ligava e liga Angeja a Cacia — a então formosa e arborizada Cambeia! — também ficava interrompida, se não mesmo cortada pelo furor das enxurradas.
Até a Ti-Conceição da Ponte, a mulher do José Venâncio, com tasquinha montada na própria Casa do Guarda onde morava com o marido, até ela, coitada, não tinha a quem vender as sardinhas fritas, pimpões e enguias de escabeche, um pratito de "robacos" na época, e, quando a porca paria a ninhada, leitão assado no forno! E quanto a vinho e aguardente, ela esmerava-se por ter uma boa qualidade para servir os caminhantes, feirantes e gente do campo! E ainda, para agradar a umas tantas mulheres na presença dos maridos, uns pirolitos para adocicar o parreirol!
Mas não era só na Ponte de Pau que acontecia, no verão, haver arraiais nas margens do Vouga! Em Angeja, Frossos, S. João de Louve e por aí fora, o povo juntava-se em "sociedades" e cantava e dançava ao som de música que os próprios entoavam. E não faltava quem vendesse o seu copito, corno hoje se vendem nas praias esses milhentos e efeminados coca-colas a saber a sabão de barbeiro!
Sarrazola, por razões óbvias de lonjura, não frequentava os areais da Ponte de Pau, mas também organizava festas semelhantes no MurçaínhO, nas
barreiras do Rio Novo, onde não faltava a tasquinha do Ti-Crespo, com parreirol da zona, fresquinho de beber em tardes de canícula. Mas os arraiais de Sarrazola, por serem mais caseiros, não tinham as características "inter-regionais" dos de Cacia.
Em conclusão: o Rio Vouga, na sua derradeira etapa rumo à Ria de Aveiro, era uma permanente festa! Mesmo nos dias de trabalho, era ver o Vouga pejado de mercantéis rio acima, uns, a demandarem Águeda e o Poço de Santiago ajoujados ao peso do sal, outros, rio abaixo, carregados de vinho, de lenha e de carqueja, para Aveiro, Murtosa e Ílhavo.
O Rio Vouga foi durante séculos um palco de vida intensa e um braço de Deus a ajudar o progresso das nossas terras!
Pelo que fez em vida merece, agora que está morto, um profundo e comovente epitáfio na sua campa, que é a Ria!
NOTA — A Casa do Guarda, após a abolição da taxa de portagem e pouco tempo depois da morte de José Venàncio, foi usada, durante muitos anos, como depósito de ferramentas dos cantoneiros.
Bartolomeu Conde / O Aveiro, 07/01/1993
artigo "Recordando... As Praias Fluviais do Vouga"
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