quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O que é uma grande mulher?


O que é uma grande mulher? Expressão utilizada para descrever mulheres com dimensão superior. Mulheres admiráveis. Mulheres fortes e empenhadas. Surpreendentes. Mulheres dedicadas, que arranjam tempo e forças onde elas parecem não existir. Mulheres com uma energia transformadora.

Ao longo da minha vida, tive a sorte de conhecer algumas grandes mulheres.

Duas delas, exemplos maiores para mim, figuras inspiradoras, já partiram. Ambas, cedo demais.

Deixem por isso que vos fale delas… as duas grandes mulheres da minha vida: minha mãe, Eugénia, e a mãe dela, minha avó, Delmira, filha única, de mãe solteira e pai incógnito, ficou órfã aos 14 anos. Também a sua mãe, minha bisavó, partiu cedo demais, devido a doença incurável nos idos de ’31. Dela sei apenas o nome, que é o meu, em sua homenagem. Clara. E uma data: 1 de Janeiro, o dia em que partiu. Nada mais. Nem uma imagem. Nenhuma referência. Nenhuma outra história para contar.

Minha avó Delmira, ou Delmira Clara como os mais velhos lhe chamavam, era analfabeta. Pobre de condição social, não teve oportunidade de ir à escola, que só estava ao alcance de alguns. Desde cedo começou a trabalhar na terra e cedo se casou. Aos 17. Meu avô, com a 4ª classe, foi um autodidacta, tantas vezes ao serviço da comunidade, mas não sujava as mãos na terra. Mãos imaculadas, que compunham obras musicais e seguravam a batuta com que dirigia a Banda Filarmónica. Mãos que desenhavam uma caligrafia irrepreensível, as mesmas que seguravam o giz, as fazendas e o velho ferro de brasas, com os quais trabalhava diariamente na sua alfaiataria.

Meu avô Alberto nada sabia fazer nas lides da casa, nem o caldo de galinha para os dias em que minha avó dava à luz. Dizer que dava à luz é um eufemismo, porque parir é a palavra que melhor retrata a realidade daqueles tempos. É também a palavra que ainda hoje muitos usam, sem preconceito semântico, sem medo do carácter mais rude, mas verdadeiro da palavra. Minha avó pariu a maioria dos filhos sozinha, porque não tinha dinheiro, deixando a sua vida e a do novo filho nas mãos de Deus. Apenas no primeiro, o meu avô chamou o médico da terra. A preocupação de como se iria pagar ao Dr. Portugal foi secundarizada perante a emergência, numa época em que tantas mulheres morriam durante o parto. Foi um nascimento difícil, o do primogénito, que acabou tirado a ferros. Depois disso, a experiência tomou conta do recado, mesmo no parto mais complicado de todos, o sexto, do qual necessitou de maior tempo de convalescença. Dessa vez, não regressou ao campo dois ou três dias depois, como sempre fazia. Um filho entrava no mundo, a terra dava o alimento, a terra não podia esperar.

A vida seguia o seu curso sem tempo para lamentos, como quando, poucas horas depois de colocar mais uma criança no mundo, se punha na fila para comprar pão. Um conterrâneo atento, quase indignado pela ‘loucura’, mandou-a para casa. O pão lá chegaria, pouco depois. Era assim a minha avó Delmira. Uma força da natureza. Uma lutadora perante as dificuldades. Uma mulher que não se queixava, porque nunca tinha vivido de outra forma.

Eram assim as Marias Capazes, as Delmiras das aldeias longe dos centros urbanos, em pleno período do Estado Novo, onde o dia-a-dia não era muito mais do que a superação constante de obstáculos.

Minha mãe foi a 4ª de 11 irmãos. A primeira menina. Nascida a 29 de fevereiro de 44, não quis o destino que tivesse o seu dia de aniversário assinalado no calendário, a cada novo ano. Perante o dilema da criança que se vê ‘saqueada’ do seu dia, minha avó decretou 28 de fevereiro como o dia a celebrar. Fossem esses todos os problemas, e seriam fáceis de resolver.

Ao contrário de minha avó, a Geninha teve a possibilidade de estudar. Gostava da escola, era boa aluna e tinha sede de aprender. Fez a 4ª classe, a escolaridade obrigatória de então.

De nada valeu a insistência da professora para que continuasse os estudos. Tinha 11 anos quando os meus avós a mandaram para Lisboa, ao cuidado da madrinha, para começar a servir. Os poucos escudos que ganhava, enviava para ajudar no sustento da família, que continuava a crescer. Também ela, nunca se queixou de ter sido obrigada a assumir responsabilidades de adulta, quando deveria ser apenas criança. E, mais tarde, quando eu lhe perguntava quão difícil tinha sido, ela apenas me dizia que o pior era quando a noite chegava e, já na cama, chorava com saudades da mãe, do pai e dos irmãos. Quando um novo dia nascia, o trabalho ocupava-lhe a mente e abafava a saudade. Até a noite chegar, de novo…

Casou-se aos 22. No nascimento dos dois filhos, teve direito a uma cama de maternidade e a parteira profissional. Teve direito ao tempo necessário para recuperar, depois de dar à luz. Teve direito a algum tempo para cuidar de mim e do meu irmão no primeiro mês de vida e, quando o trabalho já não podia esperar, levava-nos com ela. Mas teve, tal como a mãe, uma vida de trabalho duro. Trabalho para ganhar e poupar. Trabalho, para construir uma casa. Trabalho, para dar aos filhos a possibilidade de estudarem. Trabalho em casa, depois do trabalho, para ganhar um dinheiro extra. Trabalho para evoluir e mudar o rumo da sua própria vida, ao profissionalizar-se numa área para a qual tinha um talento imenso: a cozinha.

Assisti a muito do que fazia esta ‘mulher de trabalho’. Já na fase final da vida, ainda demasiado jovem, mas já condenada a partir, assisti, incrédula, ao que ainda era capaz de fazer, sem se deixar vergar pela doença.

Minha mãe poderia ter sido o que quisesse ser, assim lhe tivesse sido dada a oportunidade. Tinha a força, a vontade e a inteligência para o fazer.

Muitas coisas mudaram desde esses tempos. Na condição da mulher, no acesso a cuidados de saúde, no acesso à educação.

Eu tive as oportunidades que nenhuma delas teve. Tive direito a tudo o que a minha avó não teve, e a mais do que teve a minha mãe. Mas tive sobretudo o exemplo de força e coragem que me deixaram, e que considero o seu maior legado.

É a estas duas grandes mulheres, Marias Capazes, que presto homenagem neste texto… e através delas, a todas as grandes mulheres que se revelam perante as novas dificuldades destes novos tempos, que se superam, não se resignam… e não baixam os braços. A cada novo dia, vislumbra-se o amanhã. O seu legado perdurará.

Clara de Sousa, Maria Capaz, 15/12/2014

(A jornalista da SIC tem raízes em Angeja)

Era uma bebé de colo, levada pelos meus pais, na minha primeira viagem "à terra". 

Os jovens Antero e Eugénia, casados ainda nem dois anos antes, iriam assim dar a conhecer a sua primogénita a toda a família. A de Angeja primeiro, porque era a primeira paragem após a saída de Lisboa, e a de Filhagosa, a que demorava mais a alcançar, mas que se podia abraçar após um longo e extenuante dia de viagem. Outros tempos, de um país com lentas ligações rodoviárias e ferroviárias.

Ror de Coisas - Agosto de 1968

Uma publicação amiga trouxe, até nós, este excepcional texto de Clara de Sousa. Partilhamos o elogio, a homenagem que faz a duas mulheres da sua vida, a avó e a mãe, nossas conterrâneas, porque servirá de mitigador do desalento, da solidão e da saudade que nos trouxe\ a pandemia em que vivemos.

facebook do Jornal D'Angeja, 3 de fevereiro 2021

Clara de Sousa já lançou 3 livros de receitas que dedicou à mãe, por ter sido ela quem lhe transmitiu a paixão pela cozinha ainda na infância. "Para a minha mãe, de cuja massa sou feita e que me moldou", pode ler-se na dedicatória de 'A Minha Cozinha', editado em 2011.

Os anos passam, mas as saudades continuam. Clara de Sousa, que perdeu a mãe em 2002, vítima de cancro, fez questão de assinalar o Dia da Mãe com uma fotografia antiga da progenitora. E as semelhanças físicas entre as duas são inegáveis.

Flash, 7/05/2018

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