terça-feira, 15 de junho de 2010

As Choradeiras


Por indicação de pessoa amiga, tomei, há uns 10 anos, conhecimento da existência de dois manequins articulados, em madeira, com sinais evidentes de seram coisa muito antiga.

Provenientes da baldeação dum armazém de agência funerária, antigamente pertença de um angejense, aquelas "relíquias", consideradas sem valor destinadas a lenha, há muitos anos que ali permaneciam sem que os seus actuais proprietários soubessem exactamente para o que terão alguma vez servido. Um funcionário que trabalhou naquela agência funerária durante uns cinquenta anos, disse ter sempre visto esses manequins, arrumados para um canto, e que sempre lá permaneceram sem qualquer utilidade. Outra pessoa, uma senhora, relacionada com aquela agência, disse ter ouvido a um seu familiar, há muito falecido, que aquelas "estátuas carpideiras" eram usadas nos funerais de Angeja e chamadas "choronas".

Fui a Angeja procurar esclarecer e caso. Ouvi dois homens de provecta idade, que me falaram assim:

"Os funerais antigamente eram coisa muito séria, eram cerimónias de muito respeito e recato, em muito sílêncio, tudo de preto, fato preto, gravata preta... fosse de pobre ou de rico o respeito ora o mesmo. A diferença entre ume outro era apenas nos sinais de luto. Pobre ou rico, em Angeja, a casa do defunto era guarnecida à entrada por faixas pretas, do veludo ou de flanela, conforme as posses ou o desejo da família. Quem passasse na rua ficava a saber que naquela casa jazia um morto e nesse tempo todos se descobriam e até rezavam um padre-nosso a encomendara alma do defunto. Nos funerais ricos essas faixas eram de veludo, bordadas e com rendas apropriadas ao luto. Até havia faixas de veludo inglês, que era muito caro por causa das estampagens a ouro.

... mas as tais choronas?

Não eram choronas, chamavam-se "choradeiras". Isso era nos funerais ricos. Os armadores, os cangalheiros, armavam a casa do morto com panos pretos, cobrindo todas as paredes da sala que servisse de câmara ardente. Quando havia flores e missa cantada de corpo presente, a igreja era ornamentada com vestes negras, faixas de veludo preto na porta principal, todas as janelas e vitrais forrados a panos pretos, púlpito, e tudo/ A missa era cantada por cinco ou sete padres, conforme, com coroa acompanhar, que o coro ora formado com os próprios músicos da filarmônica.

... da filarmónica?!

Sim, que os funerais ricos levavam sempre música e eram esses músicos que faziam o coro. Um, era só alguns instrumentos, violinos, saxofones, clarinetes... Ainda me lembro do regente Américo Amaral e do Paulo Capela, aquilo é que eram duas vozes!

... a as choradeiras?

Os armadores é que eram os donos disso. Aqui em Angeja só o Guilherme Capela é que as tinha. Essas que você viu em Esgueira devem ter sido dele, pois só, em Angeja é que havia choradeiras, não conheço esse costume noutra localidade, se bem que me parece que uma vez ou outra se fizesse isso em Soltou, quem sabe se por influência do armador de Angeja, o tal Guilherme Capela.

Mas como ia dizendo, a igreja era toda ornamentada a preto, no centro era armada a essa, toda forrada a veludo preto, bordada com rendas e estampagens. Em cima ficava o caixão.

Nos funerais ricos o caixão levava duas faixas de veludo branco, colocadas em cruz e orladas a grade-veloz, que é uma espécie de renda entrelaçada. Nesse tempo era assim...que eu, rapazito ainda, ajudei nisso meu pai...

Quanto às choradeiras eram quatro, cada uma colocada aos cantos da essa. Todas tinham um véu preto na cabeça e os vestidos eram todos de luto fechado, assim como se fossem viúvas... que até tinham lágrimas pintadas na cara/ Mas esses costumes já acabaram há uns setenta anos..."

Por informações posteriores apurei que o manequim representado na fig. 2, não pertence ao grupo das "choradeiras" (fig. 1), quer pela sua altura (muito mais baixa que estas), quer pelo vestido azul-roxo já muito delido, quer ainda pelo aspecto risonho e abonecado da face. Pelo desenho (fig. 2), verifica-se que não tinha membros inferiores e que o tronco assentava numa espécie de dobadoira, com base rodeira na qual se via um orifício central que bem poderia ter servido a um qualquer eixo giratório da engenhoca. Não me parece ter sido imagem ido santa, pois a boca estava semi-aberta, num sorriso que mostrava alguns dentes, o que não é usual em imagens de santos.

Qualquer dos dois tipos de manequins tinha camisa branca de linho por baixo do seu vestido, preto na fig. 1 e roxo na fig. 2.

Por sugestão de um amigo a quem comuniquei a "descoberta", fomos ambos pedir á pessoa que tinha os destroços destes manequins, que no-los oferecesse antes que os mesmos fossem para o lareira ou para espanta-pardais dalgum faval. Fomos de boa vontade bem atendidos.

Para melhor salvaguarda deste "achado" resolvemos no mesmo dia ir entregá-lo à guarda da Directora do Museu de Aveiro, que deu ao caso especial atenção, ~ que é de esperar, finalmente, um "destino" mais digno que o que lhe estava destinado!

Quanto ao manequim da fig. 2 não consegui descobrir a sua verdadeira função.

Nov.1991 BARTOLOMEU CONDE

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