quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Desenvolvimento - artigos Dr. Mário Jorge

O círculo vicioso da desqualificação (2000)

É nos bairros periféricos das cidades, nos seus dormitórios, nas áreas sem equipamentos e disciplina urbanística, que se identificam os maiores índices de criminalidade, cujos expoentes máximos são os ‘gangs’ de marginais, jovens e não só.

Há tempos, escrevia Nicolau Santos no Expresso (1 de Julho de 2000): "Uma das mais importantes tendências do século XXI aponta no sentido da competitividade vir a medir-se não entre países mas entre cidades. E estarão em competição não as cidades de um determinado país face às cidades de outro país, mas cada cidade em relação às outras cidades do seu país. Será uma concorrência feroz e sem tréguas, em que os presidentes das câmaras municipais terão uma importância decisiva. A sua capacidade política para conseguir o melhor para as suas cidades, garantindo boas infra-estruturas, ambiente limpo e saudável, segurança, acesso fácil a serviços de saúde, parques tecnológicos, equipamentos culturais e desportivos, será fundamental para os espaços que governam (...). Esta competição implicará que cada cidade tenderá a especializar-se em determinada área de actividade e a oferecer as melhores condições para atrair investigadores, médicos, cientistas, professores, desportistas, artistas, investidores, empresários. Serão as cidades-excelência, procuradas por nacionais e estrangeiros, por indivíduos e empresas, por serviços públicos e privados".

Tentando aplicar estes pensamentos à realidade do concelho de Albergaria, fica-nos o sabor amargo de uma angustiante desilusão, por se constatar que aqui o caminho é o oposto. Em vez de se pressentirem os sinais seguros de uma caminhada para a excelência, em termos de gestão racional e harmoniosa do espaço urbano, de concretização de um modelo de desenvolvimento equilibrado, criando mais qualidade de vida – a dura realidade é a de uma cada vez maior subalternização do concelho, de um maior afastamento perante a linha de desenvolvimento que já se identifica por todo o distrito.

No concerto dos concelhos circunvizinhos, nomeadamente dos mais poderosos, como Aveiro, Águeda e Oliveira de Azeméis, é notório o atraso de Albergaria, no que respeita não apenas aos indicadores económicos, mas sobretudo no conjunto dos itens que definem a qualidade de vida.

Por algumas vezes, tentámos suscitar o debate acerca de qual o destino de Albergaria: apenas um dormitório de mão de obra, de serviço às cidades que nos envolvem, ou um aglomerado que possa reverter a seu favor as suas próprias limitações geográficas e económicas, servindo de contraponto aos grandes centros, transformando e potenciando em qualidades e atributos a sua posição necessariamente periférica? Ser um dormitório, ou ser uma área residencial, com tudo o que aquele significa de mau e esta de bom?

O debate não é inócuo. Saber o que se pretende de Albergaria, é colocar em discussão o modelo de sociedade que se almeja, nomeadamente ao nível da gestão do seu espaço geográfico. É bom lembrar, permanentemente, que as comunidades vivem num espaço, do mesmo modo que as pessoas habitam em casas. A organização, a harmonia, o apetrechamento desse espaço é que pautam a qualidade de vida das pessoas, a sua maior ou menor felicidade. Assim como não se é feliz numa casa sem os cómodos adequados, sem os equipamentos básicos, numa casa degradada e suja – também não há comunidades prósperas em espaços desorganizados, tortuosos, sem equipamentos, sujos. A prosperidade e qualidade de uma comunidade dependem desde logo das condições e organização do território onde está radicada. E a falta de alegria e de harmonia de uma comunidade, a falta de qualidade de vida, são uma das principais causas da delinquência, da violência e da agressividade, mais evidentes na juventude.

É também por isso que é nos bairros periféricos das cidades, nos seus dormitórios, nas áreas sem equipamentos e disciplina urbanística, que se identificam os maiores índices de criminalidade, cujos expoentes máximos são os ‘gangs’ de marginais, jovens e não só. A delinquência está na razão directa da degradação urbanística e da falta de uma gestão do território atenta à integração das comunidades.

Estas pechas são, por sistema, as consequências da criação de dormitórios suburbanos, sem qualidade, sem um ordenamento adequado à integração das comunidades.
A partir daqui, a partir do momento em que uma área cresce sem uma disciplina urbanística especialmente atenta às especificidades de uma zona dormitório, então o circulo vicioso da desqualificação nunca mais pára. Se um território sofre os efeitos de um crescimento tortuoso e indisciplinado da construção, sem o paralelo aparecimento de equipamentos de convergência e de espaços de integração comunitária, ocorre um movimento de repulsão de núcleos a quem estes aspectos não agradam, e de atracção de famílias de poucos recursos e baixos índices de exigência em termos de qualidade.

São sobretudo as massas humanas que vêm do interior rural e procuram emprego nas periferias das cidades, em regra desqualificadas profissionalmente, de baixos recursos e de níveis culturais a rasar o zero. O seu grau de exigência é mínimo, satisfazem-se com pouco. E também pouco ou nada se lhes dá. Por outro lado, quem revela padrões de qualidade mais desenvolvidos acaba por se afastar, ou de nem sequer ali se estabelecer.

Degradado, pois, o território, por uma gestão inadequada e incompetente e por uma governação insensível, o dormitório é o destino natural de uma procura nada exigente, impreparada, sem recursos, proletarizada, que irá recriar a cultura de bairro.

A tendência inevitável será então de o concelho, que não se consegue opor a este movimento, vir a transformar-se na periferia das cidades que se vêm a impor pela sua qualidade.

Em Albergaria-a-Velha, os investimentos em qualidade de vida têm sido mínimos. Tirando o que é obrigatório, têm sido insignificantes os lampejos de criatividade, com vista a evitar esta suburbanização do nosso espaço.

Repare-se que uma área periférica e suburbana é sempre um espaço sem história, sem personalidade colectiva, uma espécie de gare aonde aporta quem tem dificuldades em entrar no corpo da cidade. É um espaço por definição transitório, uma espécie de arrumos da casa principal, e portanto sem beleza, sem requinte.

O nosso concelho está exactamente nesta secundarização, transformada num espaço desarrumado, sem ordem, sem beleza, sem qualidade.

E nada os órgãos autárquicos fazendo para realçar a sua história, a sua personalidade; nada fazendo para aumentar os seus espaços e equipamentos de convergência colectiva, os seus parques, as suas áreas de lazer – é inevitável que a sua suburbanização seja a cor que já domina entre nós: é a negligência (já tantas vezes aqui denunciada) quanto à falta de recolha selectiva dos lixos; é a falta de civilidade no comportamento dos grupos, é a transformação do centro cívico da sede do concelho num ridículo "pimbódromo", debitando tardes a fio rodos de barulho alarve, atordoando quem lá passa, ou vive por perto; é a modéstia do comércio; é a prática cultural intermitente, quase sempre ao nível da romaria; é a terrível falta de espaços e equipamentos básicos de convergência (parques, praias fluviais, campos de jogos, bibliotecas, auditórios)...

São pois os inúmeros estigmas de uma "cultura" suburbana, afinal o caldo onde germinam todos os factores de desagregação social, a violência, a delinquência, a agressividade.

Com toda esta desqualificação, é fatal que o espaço se desorganize, assim seguindo tudo num circulo vicioso imparável. Perante a desqualificação do espaço e das comunidades, os factores de valorização e de excelência, de que fala o trecho acima transcrito, ficam ausentes, são ‘apanhados’ por outras terras, perdendo-se assim níveis de competitividade. Albergaria-a-Velha já não está em condições de concorrer com a maioria das cidades e vilas do distrito, porque não exibe predicados de excelência a nenhum nível, faltando-lhe os mais básicos elementos de qualidade de vida. Não está no mapa das coisas notáveis, por nada de positivo, de digno, ou de excelente. Longe vai o tempo em que dizíamos que Albergaria já começava a ser uma boa terra para se viver. O tempo que se perdeu!

Mário Jorge de Lemos Pinto / Jornal de Albergaria
republicado no site Notícias de Aveiro em 25/09/2000


E Aveiro aqui tão perto... (2001)

O jornal PÚBLICO do passado dia 22 de Setembro dedicou a sua rubrica relativa às ‘Autárquicas 2001 – O Portugal das Cidades’ a Aveiro. E deu-lhe um título sugestivo: ‘Aveiro – Uma Aposta Certeira na Qualidade de Vida’.

O artigo dá conta que em Aveiro a qualidade de vida é uma evidência reconhecida por todos. Desde os seus habitantes até aos que estão de visita, todos sublinham as excelências desta cidade, ao nível da segurança, do ambiente, do trânsito, da arrumação urbanística, da oferta cultural. “Uma qualidade de vida traduzida em equipamentos e acontecimentos quotidianos, mas alicerçada numa infra-estruturação concluída muito antes dos grandes projectos”.

Certo que a cidade de Aveiro beneficia de um conjunto amplo de equipamentos cuja existência tem a ver exactamente com a circunstância de ser uma cidade, e capital do distrito. É o caso da Universidade e de um elenco vasto de serviços administrativos.
Mas a qualidade de vida, que pujantemente Aveiro patenteia, é a resultante de muito mais do que isto. É o produto de uma gestão autárquica cuidada e inteligente, pensada desde o primeiro momento com o objectivo de criar aos aveirenses condições de vida saudáveis e agradáveis.

A qualidade de Aveiro não resulta apenas dos equipamentos de que dispõe, mas também, e muito, de um planeamento urbanístico harmonioso, com vias de circulação arejadas e folgadas, com zonas verdes cuidadas. E é por isso que todos reconhecemos que Aveiro é uma cidade bonita, não apenas porque predestinada com condições naturais de eleição (a Ria), mas porque o ordenamento do seu espaço físico foi sempre cuidado.

Deve reconhecer-se que este manancial de excelências não pode ser anotado a crédito apenas da actual Câmara de Aveiro. Creio que isso vem (pelo menos) do tempo das Câmaras presididas por Girão Pereira, isto é, de há mais de 25 anos, e a que o elenco municipal presente soube dar continuidade, embora, por certo, com meios financeiros mais poderosos.

Este desenvolvimento da cidade de Aveiro poderia representar para Albergaria-a-Velha um de dois movimentos, de sinal oposto: ou uma tendência mimética, de imitação, uma tentativa de aproveitar o exemplo e as cinergias próprias do desenvolvimento de uma cidade tão próxima (geográfica e afectivamente). Ou, pelo contrário, um retrocesso, uma subalternização, uma suburbanização.

Ambos os movimentos são possíveis.

Há pequenas povoações que sabem tirar partido da qualidade de metrópoles de maior dimensão, criando elas próprias condições de vida de qualidade. Basta ver que o crescimento das cidades, por muito harmonioso que seja, gera sempre alguns efeitos perversos, subprodutos quase inevitáveis: mais ruído, mais trânsito, menor coesão social, mais imigração do interior, menos espaços colectivos.

As pequenas povoações adjacentes podem beneficiar de alguma procura da periferia, desde que esta ofereça o que a grande cidade não tem. É um pouco como o hipermercado, que está longe de substituir o tratamento personalizado da pequena mercearia de bairro, capaz de oferecer produtos e atendimento que não têm lugar nas grandes superfícies.
Mas o contrário também ocorre, e com mais frequência. A proximidade de uma cidade com qualidade de vida pode fazer com que as povoações satélites sofram os efeitos da suburbanização.

É o que acontece com o aparecimento dos bairros-dormitório, onde pernoitam muitos do que trabalham na cidade. Sobretudo os que não dispõem de meios que lhes permitam ocupar as zonas residenciais da cidade, mais caras, mais inacessíveis.
Os bairros-dormitório, porque são áreas de passagem, são o parente pobre dos bairros-residenciais, estes com mais qualidade urbanística, no geral providos de equipamentos de lazer, áreas verdes, e portanto mais caros.

Nos primeiros habitam (‘dormem’) as pessoas de menos recursos, em geral recem-imigrados em busca de melhores condições de trabalho nas zonas industriais das cidades, casais jovens que apenas aspiram a poderem mudar-se o mais depressa possível, e uma massa imensa proletarizada, de baixos recursos. Nos bairros-residenciais fixam-se as pessoas de mais rendimentos, ou com preocupações culturais mais exigentes, que aspiram a um modo de vida mais cuidado.
Os exemplos de uma situação e de outra acabam por ser visíveis no tecido urbanístico da nossa região.

Já há muito tempo que temos vindo a anotar a tendência suicida de Albergaria se tornar numa zona dormitório, suburbana, das cidades que a cercam, nomeadamente de Aveiro. Ou seja, é cada vez mais evidente que o nosso concelho não tem conseguido furtar-se às tendências suburbanizantes que emergem da sua proximidade das cidades.

As sucessivas gestões municipais de Albergaria têm manifestado uma clara e catatónica falta de visão para salvar o nosso concelho daquilo a que uma vez chamámos de ‘circulo vicioso da desqualificação’: a desqualificação urbanística e do ordenamento do território gera necessariamente mais des-qualificação.

Os resultados desta deriva na gestão municipal de Albergaria são por demais evidentes: um (des)ordenamento do território caótico; total ausência de zonas verdes, de lazer e de fruição colectiva; ausência de equipamentos de convergência colectiva; vias de comunicação estreitas e sinuosas, acentuando a conglomeração dos edifícios; implantação de edifícios a esmo, gerando subprodutos físicos, como becos, esquinas, varandas dependuradas sobre as vias, convivências espúrias de habitações unifamiliares com prédios em propriedade horizontal; trânsito ‘terceiro-mundista’, desregrado, já entupido a algumas horas e em algumas vias.

As consequências sociais e económicas são notórias: mentalidade, comportamentos, padrões de cultura suburbanos, sobretudo da juventude; insatisfação das pessoas, gerando individualismo e agressividade; ociosidade e ausência de mecanismos de ocupação de tempos livres; êxodo dos jovens quadros técnicos, para zonas com mais qualidade; baixo nível de rendimentos e consequente baixo poder de compra das famílias; logo, comércio incipiente e sem dinâmica.

Em conclusão, o concelho de Albergaria-a-Velha tem sido influenciado negativamente pelo desenvolvimento de Aveiro: em vez de tentar acompanhar a reconhecida qualidade de vida desta cidade, Albergaria está a sofrer os efeitos que marcam o aparecimento das terras-dormitório.

Tudo resultado de uma gestão municipal sem ambição, sem qualidade, sem bom gosto, sem inteligência. De vistas curtas.

Mário J. Lemos Pinto/Jornal de Albergaria
Republicado pelo site Noticias de Aveiro em 05/10/2001

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