quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Prefácio do livro "Angeja e a Região do Baixo Vouga"


Todo o homem é, espiritualmente, filho da paisagem que iluminou a sua infância. A nossa alma é moldada na terra. As serras e as praias calcinadas e ardentes da Córsega acompanharam Napoleão até Santa Elena. O lirismo de João de Deus é, todo ele, perfumada pelas amendoeiras em flôr do Algarve. Triste ou colorida, árida ou verde, encapelada pelas ondas e pelos ventos do mar, ou montanhosa e batida pela tentação da altura - a alma humana será, através da vida, o espelho da primeira luz, doirada ou cinzenta, rósea ou noturna, que os seus olhos receberam.

A primeira árvore, a cuja sombra dormimos ou a primeira onda, cujo canto nos embalou, ficarão perpetuamente reverdecendo em raiz ou irisando-se em espuma no fundo do nosso espírito - e a cada hora da nossa existência, inconscientemente, é sob ela que nos abrigamos ou junto dela que sonhamos.

O lugar onde nascemos pode ser indiferente. Mas o primeiro contacto físico com a natureza e com o mundo dominarão imperceptivelmente a nossa existência. Camilo é de Lisboa, mas a sua infância e a sua adolescência foram transmontanas. Os açudes e as torrentes de Trás-os-Montes constituirão a perpétua païsagem moral da sua existência dramática - dramática como a serra que a criou.

É, por isso, que o sentimento da pátria é um sentimento natural e não social, eterno como a vida. Mas a imagem da pátria só se torna por assim dizer física através da provincia, da aldeia, da cidade, da colina ou da planície em que, a nossos olhos, na primeira visão, se fundiu. para sempre e para sempre ficou vivendo em nós a primeira maternidade do solo e da luz, de que espiritualmente nascemos. A primeira raiz que deitámos à terra prenderá sempre, por longe que andemos, os nossos passos incertos. Quando ela por acaso se rompe, o elo moral da nossa vida partiu-se. O homem deixa então de ser aquilo para que Deus o criou - uma planta animada pela seiva da terra para se tornar, num reino de sombras, apenas uma sombra sem destino.

O livro que o meu velho amigo Dr. Ricardo Souto acaba de me enviar em provas e para o qual, afectuosamente, deseja algumas palavras minhas de introdução, é sobretudo para mim uma evocação dos doces, frescos e cantantes vergeis do Vouga, em que meus primeiros anos decorreram.

O túnel de Angeja, a pateira de Frossos, as estradas e as tricanas, a ria, as fontes, os cômoros, os milharais ao vento, o ar lavado dos montes, os adros floridos, os pinhais e as eiras - todo o horizonte da minha infância e da minha adolescência revive, a meus olhos, nesta tarde pálida da Belgica em que escrevo. Oiço os rebanhos nos campos, revejo o milho doirado ao sol, contemplo de novo sobre as areias claras, as águas do Vouga que brincam com os salgueiros e as codornizes - e, de longe, à distância de tantos anos, eu vos bemdigo, oh bemfazejas saüdades!

A poetisa Ana de Noailles escreveu, um dia, que de todos os estados humanos, a infância é o mais persistente. Verdade perfeita. A mocidade passa e desaparece sem deixar no nosso espírito traços perceptíveis. Raras são as velhices que prolongam a juventude. Mas as impressões da meninice, a semente emotiva como a formação visual, que a primeira idade lançou no nosso espírito, ficarão germinando pela vida fora, e os nossos sentidos, como as nossas faculdades morais, crescendo e desenvolvendo-se, conservarão até à morte a primitiva marca.

O homem esquecerá facilmente factos e figuras dos seus vinte anos ou da sua maturidade, mas recordará perpétua e insensivelmente os seus primeiros brinquedos, os seus primeiros amigos, as suas primeiras dores, os primeiros olhos que o beijaram ou os primeiros braços que o repeliram, o mal e o bem que se curvaram sobre o seu rosto - e, como num espelho, as primeiras sensações físicas da vida refletir-se-ão sempre no fundo da sua alma, alastrando através dos anos a primeira aprendizagem da Natureza. O espírito infantil é uma cera virgem. A infância é uma escultura.

Essa influência emotiva e sensorial é tão grande que pode dizer-se que o ideal feminino do homem dependerá, no decurso de toda a existência, da imagem que as primeiras carícias maternais imprimiram na sua imaginação. O conceito sexual de Freud é, nesse capitulo, absolutamente exacto. E, no dominio dos sentidos, quem não sabe que o nosso paladar, por exemplo, ficará indestrutivelmente escravo da cozinha da nossa infância - e que um flamengo pode correr o mundo, mas delirará sempre diante dos mesmos acepipes que já fizeram delirar Rubens; que um italiano preferirá, inevitavelmente, mesmo após cinquenta anos de exilio, a sua "pollenta" e os seus "spaghetti", que um russo, um português, um espanhol ou um hungaro desprezarão, em qualquer lugar ou idade em que se encontrem, o mais régio acepipe, para se sentirem dilatar de gozo pela recordação culinária dos seus primeiros anos?

O rei Alberto confessava que, na Corte de Londres, ou no protocolo do seu Palácio de Bruxelas, dificilmente sabia reprimir a tentação das grossas sopas de café com leite a que, caseiramente, quando criança, sua mãe o habituara, todas as manhãs. E aqui me têm a mim que, neste momento, daria todos os banquetes principescos do mundo, por uma caldeirada de peixe do rio d'Aveiro, cheirosa, fumegante, crepitando de azeite e côdeas de trigo, espessa e picante, capaz de ressuscitar o estômago de um morto - preparada e saboreada à sombra dos salgueiros, ao ar livre e quente, numa dessas tardes d'Agosto, verde e oiro, de que o Vouga da minha infância conserva ainda hoje a meus olhos, o privilegiado e claro segredo!

Se toda a nossa vida é dominada pelas impressões visuais da primeira idade, eu devo, sem dúvida, às fontes risonhas, aos calmos e ondeantes campos, às estradas luminosas, às romarias, aos vinhedos e aos pomares do Baixo Vouga, em que fui criado, esse fundo de optimismo tranquilo, de confiança jovial e de sereno amor pelo espaço e pela luz que sempre, até hoje, dominou o meu espírito. Creio que a voz alegre do claros montes me ensinou a esperar e a escutar; no canto das águas, que sabem chorar e rir, aprendi a ternura e a ironia - e foi de lá, desses horizontes floridos e frescos de ribeiros e de pinhais, que trouxe a reserva de claridade que, através de tudo, ilumina a minha alma potuguesa e errante, banhando-a sempre de distância e de sonho.

Foi lá que se formaram esse gosto da Natureza e essa ância de renovação que constituem as permanentes anciedades do meu espírito. Lá aprendi a olhar o sol e o Céu: um, ensinou-me o desejo, outro a esperança. Quando procuro Deus é lá , na pequena e rústica capela do Fontão, perfumada de incenso e rosmaninho, que o vejo estender-me os braços acolhedores e rústicos - e quando recordo a minha mãe é, sob os caramanchões do jardim, em que duas grandes bicas d'água ora soluçam ora cantam, que a vejo passar e chamar-me, perpetuamente viva, com seus grandes olhos que pareciam sempre rezar quando me viam...

Païsagem lirica, que ensinou o lirismo; païsagem doirada que me ensinou o Verão e a alegria; pïsagem de valados húmidos, em que gorgeiam ninhos e laranjais, povoada de colinas e de silvados, de cruzes e de ermidas, que me ensinou Portugal!

Ricardo Souto, o autor deste livro, que tenho a honra de prefaciar, foi um dos amigos dessa minha remota infância e creio que é a este facto, para mim inolvidável, que devo o prazer de ligar, nesta obra, o meu nome ao seu. Meu Pai, cuja memória, querida e ilustre, para mim está ligada a esta região falava constantemente dos "Soutos da Barca". Os Soutos da Barca eram Ricardo Souto, então jovem e distinto médico e seu irmão, estreitamente afeiçoado à minha família, e que foi um eminente magistrado.

Nascido no Porto, tripeiro de origem, foi nas terras do Vouga que passei, posso dizer, a minha infância. De lá, espiritualmente, parti. Quando meus Pais vinham passar as férias do Natal, da Páscoa ou as férias grandes ao Fontão, a pouco mais de três quilómetros de Angeja, começava para mim a grande evasão rústica da aldeia que foi a primeira e a melhor escola do meu espírito. Se mais tarde, a vida me separou dessas primeiras afeições, nunca, na realidade, as esqueci.

Como as païsagens, as figuras que conheci nesse tempo vivem na minha memória como se as tivesse ainda visto ontem: o Padre Santos, alto e espaduado, bom como uma criança, a reger a charanga de Frossos com o seu grosso bengalão de marmeleiro; o Padre José Luiz, o "Padre Zézinho", que tinha e, felizmente, ainda hoje tem talento e graça às carradas; o Castanheira, o Laranjeira, grandes amigos de meu Pai, o Manuel Maria de Angeja, em cuja casa, durante a festa da Senhora das Neves, se comiam os melhores leitões assados da região; os Lemos de Alquerubim (para onde a vida os dispersou?) e tantos outros que povoam ainda hoje de recordações, de pitoresco e de estima o meu espírito.

Todos eles vinham - uns de longe, outros de perto - assistir à festa da Senhora do Carmo, na Capela da nossa casa - festa que, ao som das músicas ao desafio e dos morteiros - missa, arraial, fogo preso - se prolongava por três numerosos dias de danças e descantes. Lá estiveram, o poeta João Lúcio, o grande cantor do Algarve, meu companheiro de Coimbra, morto pouco depois, Júlio Dantas, descido do seu Olympo de Lisboa e Carlos Malheiros Dias que lá começou o primeiro capítulo dum romance, nunca concluído, sobre as tricanas de Aveiro, as lindas tricanas cujo encanto fenício conta entre os mais belos tipos de beleza feminina do mundo. Esse capitulo de Malheiro Dias, que nunca foi conhecido, que eu saiba, descrevia uma pescaria no Vouga e era uma obra prima. Onde pára hoje e porque não publicá-lo?

Seria fastidioso enumerar outras recordações, em que irresistivelmente a minha imaginação se perde. Creio ter escrito suficiente para acentuar quanto melancólico e, ao mesmo tempo, agradecido amor me liga à maravilhosa região, cheia de tradições, de côr e de fibra portuguesa, evocadas neste magnifico livro em que o leitor verá passar perfis e datas, homens e factos, horizontes e imagens que constituem um quadro e uma admirável monografia.

Os livros regionais não são frequentes em Portugal - é pena. Eles constituem um dos mais úteis e significativos géneros literários - depósitos muitas vezes preciosos, de conhecimentos, de investigações e de documentação para a história geral do País. O livro do Dr. Ricardo Souto, vai figurar, com um brilho especial, nessa galeria de estudos e de aspectos nacionais. E eu sinto-me feliz de aqui deixar a minha homenagem ao autor, com o tributo de estima ao amigo, e a evocação, para mim sempre saudosa, das memórias e das perspectivas que estas páginas, entre tantas figuras e coisas vivas e mortas, ressuscitam no meu espírito fiel ao passado e diante dos meus olhos exilados.

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Prefácio de Augusto de Castro* no livro "Angeja e a Região do Baixo Vouga" de Ricardo Nogueira Souto

*Augusto de Castro foi escritor e diplomata (em Julho de 1937 encontrava-se em Bruxelas) e ainda director dos jornais "O Século" e "Diário de Notícias". Foi um dos principais impulsionadores dos Congressos da Imprensa Latina (1923). Foi diplomata e escritor de renome. Era filho do Conselheiro Augusto Maria de Castro que possuía uma casa no Fontão . [A Quinta do Fontão].


"Filho do Conselheiro Augusto Maria de Castro que foi Juiz do STJ, é o depositário e continuador das glórias dos seus maiores. O dr. Augusto de Castro herdou de seu extromoso pai o amor a esta terra e região, onde tem o seu Solar...". AMC era filho da nobre "Casa da Oliveirinha", tal como os Conselheiros José Luciano e Castro Matoso. Benemérito de Angeja. RNS

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